21 de setembro de 2016

Valjean e uma (possível?) pedagogia da misericórdia

Na minha playlist do Spotify está a banda sonora do filme musical Os Miseráveis e, por isso, ao longo do dia, acontece-me muitas vezes deter-me numa ou outra frase desta grande obra de Victor Hugo. Hoje de manhã ouvi pela enésima vez o Who am I. A dada altura, na luta interior que combate, Jean Valjean pergunta-se quem é ele próprio diante da iminente condenação de um inocente no seu lugar.

retirado daqui
Nos seus pensamentos cantados, Valjean recorda o episódio que lhe marcara a vida - o Bispo Myriel perdoou-lhe um enorme crime, disse-lhe que ele pertencia a Deus e convidou-o a oferecer toda a sua vida para reparar o mal feito. Todo o enredo decorre deste encontro do protagonista com o Bispo: o amor gratuito a Fantine, a paternidade de Cosette, a justiça e a verdade na relação com todos. Tudo, na vida de Valjean, nasce da consciência de que "My soul belongs to God, I know/ I made that bargain long ago/ He gave me hope when hope was gone/ He gave me strength to journey on”. Só esta posição humana permite que Valjean perdoe intima e verdadeiramente o Inspector Javert que, animado pela justiça e pela moral, se esgota na perseguição a um criminoso que deve ser punido.

Tenho pensado muito nesta possível pedagogia da misericórdia. Será possível viver assim nas nossas escolas, com os nossos alunos, com os nossos colegas? Será verdade que só o perdão regenera a pessoa?

Javert não era mau; era um homem de regras, de ordem, de “justiça”. E Valjean não era bom; tinha efectivamente roubado pão, tinha efectivamente roubado o Bispo, tinha efectivamente permitido que Fantine fosse despedida. Valjean não se transformou num homem bondoso e disciplinado, não. No entanto, Valjean não conseguia arrancar da sua consistência o encontro com o Bispo que o devolveu à sua natureza original, à sua dimensão real, à relação com o Pai. 

Com os alunos, podemos escolher se queremos convidá-los a uma vida disciplinada e ordenada ou se queremos avivar-lhes no coração o desejo de encontrar a sua natureza original. 

Um aluno muito querido que temos, o F., passou por uma fase muito difícil, com implicações patológicas e psicológicas graves. Os seus professores, com a sua família, procuraram ajudá-lo a caminhar, a dar passos, a vencer o(s) mal(es) que o afligiam mas que não o definem como pessoa. 
Terão falhado em muitas coisas menos em uma. Perdoaram-no sempre. Sempre. Sempre que ele lhes bateu, sempre que ele os insultou, sempre que ele partiu “a loiça toda”. Perdoaram-no e no dia seguinte acolheram-nos de braços abertos. Ensinaram-lhe a dizer todos os dias à noite “obrigada, Senhor, porque eu sou uma maravilha que Tu fizeste”.
Certo dia, um colega estava a portar-se mal e a professora ralhou com ele. O F. olhou para ele e disse que não se preocupasse porque lhe ia acontecer como a ele “que era um monstro e agora tinha-se tornado num príncipe”. 
A tentação de discipliná-lo espreitava todos os dias mas estou agradecida por termos arriscado na pedagogia da misericórdia. Que nos interpela a todos na nossa verdadeira natureza. Afinal, não somos príncipes e princesas...?

Catarina Almeida

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