23 de outubro de 2013

Vida e Obra - Entrevista

UMA MULHER – UMA ESCOLA


Quando me pediram para fazer uma entrevista à Maria Ulrich para os «Cadernos de Educação de Infância», acedi com entusiasmo porque a mim também me pareceu importante levar o pensamento da Maria, a sua mensagem, a todos os que se interessam por educação; mas logo me surgiu uma dificuldade: como entrevistar uma pessoa com quem, ao longo da vida, tenho mantido tão vivo e contínuo diálogo?
Quais seriam as perguntas que mais poderiam interessar todas aquelas educadoras que, há décadas, passaram pela Escola e que, de então para cá, perderam o contacto com a Maria, as outras, mais recentes, que a conheceram mais de longe e, finalmente, todas aquelas para quem o nome de Maria Ulrich está sempre ligado à educação da Infância, quase à maneira de mito. E pensei que o melhor seria transcrever, com simplicidade, a conversa que tantas pessoas gostariam de ter tido oportunidade de ter com a Maria.
A conversa decorreu na sua casa, na «Casa Veva de Lima» – o centro de encontro e de cultura que a Maria também criou há anos, em colaboração com a Câmara Municipal de Lisboa, em homenagem à sua Mãe.
E a primeira pergunta surgiu naturalmente:

T. S. - Como se lembrou a Maria de fundar uma Escola?

Mª.U. – Trabalhei na Acção Católica durante doze anos, sete dos quais responsável pela Juventude Independente Católica Feminina. Foi uma experiência indescritível! Os milagres que conseguíamos lembrava-nos os setenta e dois discípulos do Evangelho... deixavam-nos deslumbradas. Nada nos detinha, porque possuíamos uma Fé capaz de transportar montanhas. Confiávamos na intervenção de Deus e não na nossa fraqueza. Todas as raparigas na casa dos vinte anos - eu um pouco mais velha, é claro, formávamos uma equipa organizada, intimamente amiga e unida num ideal e num projecto comum.

Era, realmente, «um só coração e uma só alma». Vivíamos à semelhança dos primeiros cristãos, de quem tirávamos a nossa divisa.

Ao deixar o cargo e a respectiva acção na J.I.C.F. não podia deixar de continuar a passar a mensagem tão entusiasticamente vivida e de prosseguir no trabalho da construção da cidade de Deus.

T. S. - E porquê ma Escola de Educadoras?

M.U. – Todos os anos, na J.I.C.F. lançávamos uma Campanha. Uma, foi a do Cinema. Foi sensacional, pois conduziu a que fosse implementada a lei que regulamenta a entrada de menores em salas de espectáculos. Mas, de todas, a que se revelou o problema mais premente em Portugal, foi a da Educação.

Durou dois anos. Fizemos inquéritos em todo o País e os resultados impeliam-nos a empreender, na medida das nossas possibilidades, acções imediatas.
Pensei que se deveria começar pelo princípio, pela Infância, idade tão permeável e tão decisiva no percurso da vida, mas também t'3o fechada à compreensão do adulto.

Para isso, era preciso formar Educadoras devidamente preparadas.
Sentia-me com capacidades para essa tarefa, pois a J.I.C.F. fora uma autêntica Escola de Educação. O seu método, o seu ambiente de amizade, de exigência mútua, de responsabilidade e participação geral, conduziam a uma auto-educação, mais, a uma superação extraordinária... Foi tudo isto que eu pretendi levar para a Escola.
Devo dizer que os primeiros frutos foram logo surpreendentes. Não sei se reconheces isto tudo na Escola para onde entraste?

T. S. - Sim, lembro-me do primeiro encontro com a Maria, numa manhã de Verão, já lá vão 34 anos, quando na praia de Cascais uma amiga da Maria me apresentou e lhe disse: «Esta pequena era boa para a tua Escola». A Maria perguntou-me: Queres vir] Eu disse: Quero, sem talvez ter plena consciência de até onde este encontro e este convite me levavam... Logo de seguida conduziu-me à Escola, nesse pequeno 1º. Dto da Rua João de Deus, em Lisboa, na qual duas dezenas de raparigas entraram na grande aventura da Escola.
Ao lembrar-me da forma como decorreram estes primeiros anos da Escola não posso deixar de perguntar: Teve dificuldades no lançamento da Escola?

M.U. - Dificuldades tive todas. Todas as dificuldades que se possam conceber. Não tinha um tostão. Não tinha o mínimo certificado escolar, dado que tinha feito toda a minha instrução em França. Na altura, não havia professores qualificados para ensinar as matérias de base psicologia, pedagogia, técnicas educativas

Os Jardins de Infância, que eram necessários ao estágio das alunas, apresentavam, na sua grande maioria, apenas «o que não se devia fazer». A Escola começou com meios pobres e talvez fosse esse segredo da sua riqueza interior e da sua acção inovadora, criativa profícua.

Hoje, quando vejo que a condição primordial de qualquer iniciativa parte da avaliação dos fundos disponíveis, que a culpa de qualquer mau funcionamento dos serviços é sempre atribuída à falta de verbas, de subsídios, de participação do Estado... posso medir bem o risco e a aventura em que me lancei, sem a menor hesitação!

T. S. - E a Maria recorda os primeiros passos dados no início da Escola.

M.U. – Consegui um e préstimo bancário. De França, ode dispunha de muitos conhecimentos, «importei» uma Educadora formada que orientava a acção pedagógica das alunas. Quanto aos professores, arranjei os possíveis.
Das três condições exigidas: SER, SABER, SABER FAZER, o que sobressaía era o SER., E foi este SER que, fundamentalmente, deu às primeiras Educadoras aquele impulso a que se deve, na verdade, a grande revolução que se deu neste Pais no campo pré-escolar.

T .S. - Nessa perspectiva do SER, como 6 que a Maria idealizou, desde o início, a participação das alunas na vida da Escola?

M.U. - Na Escola, as alunas eram chamadas a agir por si próprias, com a sua imaginação e responsabilidade. Todas participavam, todas colaboravam e tudo punham em comum.
Convencida de que o espírito crítico - não confundir com critica sistemática - como factor de juízo, de discernimento e de avaliação pessoal é, verdadeiramente, fundamental.
Assim, a contestação era sempre admitida e até encorajada.
Seguia-se, depois, a discussão para o ajuste certo das opiniões. A minha intervenção era, por vezes, demasiado viva, não era? - Mas era também sempre respeitadora da personalidade de cada uma, sempre leal e pronta a reconhecer as razões alheias. Podes fazer-me justiça, porque nunca me impus!

Pretendia sim, sacudir. Sacudia muito não era? Empurrava, mas era para a frente, para fazer surgir o que havia de melhor em cada uma e que elas próprias, muitas vezes ignoravam

Assim, as sugestões eram acarinhadas, as críticas ponderadas. Era desta maneira que nos propúnhamos criar pessoas responsáveis, porque onde não há espírito crítico e participação, não pode haver responsabilização.

Mas as tuas recordações são mais valiosas do que aquilo que eu possa dizer, pois em mim era um projecto de Escola e em ti era a realidade.

T .S. - Sim, recordo bem as reuniões de equipa que tínhamos em que a vida da Escola era por nós discutida sempre com tanto entusiasmo e lembro-me de como as representantes essas equipas - eleitas pelas colegas - levavam às reuniões de Direcção, nas quais participávamos regularmente com a Maria e os outros professores – as críticas, as sugestões, as propostas com que a Escola se ia construindo.

M.U. – O que é facto é que, no fim de três anos, as alunas que dali saíam, sentiam-se capazes de endireitar o mundo, de transformar os seus locais de trabalho... Até foram logo no 2º ano da Escola tomar, inteiramente a seu cargo, uma Colónia de Férias com cerca de 30 crianças. Tu foste uma delas, lembras-te?

T. S. - Como poderia esquecer essa aventura extraordinária em que, durante três semanas, nós três, alunas do 2.° ano assumimos totalmente a responsabilidade da gestão da casa, da saúde, do bem-estar - da educação, enfim, da felicidade daquelas crianças. Foi a descoberta da educação na sua globalidade, da acção educativa a tempo inteiro e foi também, como a Maria refere, o que julgo ser a essência da sua pedagogia, a revelação das nossas próprias potencialidades.
M.U. – Fomos verdadeiramente abençoadas neste Início, pois desde a sua aparição, as Educadoras de Infância despertaram um extraordinário movimento de admiração e simpatia. De todos os lados eram chamadas, consultadas, requisitadas.

Foi como uma aragem que pareceu varrer o Pais: A descoberta da Criança!

T. S. - Fala-se hoje muito em projecto educativo. Na Escola sentia-se que havia, de facto, um projecto em acção. Quer a Maria revelar a essência desse projecto?
Viver 6 escolher.

M.U.
– O Projecto Educativo era muito simples, foi tudo que já disse. Julgo que Educar – em qualquer idade – é fazer CRESCER... É uma chamada à superação que vem despertar um eco inconsciente no educando. Todos nós fomos criados para ser deuses. É essa a proposta do Evangelho: «Sede perfeitos como o Meu Pai que está no céu é perfeito». Perfeito, não no sentido de ser «virtuoso», de suprimir defeitos que nos pertencem, tal como quem suprime um vírus com um antibiótico, mas no sentido de os sublimar e de atingirmos o máximo de que somos capazes, de visarmos, enfim, tingir a plenitude do nosso ser na integridade, na generosidade, na capacidade de realização e no entusiasmo!

Havia uma frase que, na Escola, algumas alunas repetiam sempre para definir o objectivo da sua acção educativa: «Desenvolver todas as potencialidades da criança». Devo confessar quanto esta frase me crispava pelo que aparecia como um frase feita e repetida de cor. Chamadas a concretizar, as alunas citavam o desenvolvimento mental, social… faltando-lhes sempre o essencial, o tal «invisível», que é o que importa: A construção interior assente naquela escala de Valores que se aprende a «apreciar» afectivamente na infância, que se vai consciencializando à medida que crescemos e em que baseamos todo o nosso comportamento, a nossa maneira de ser e de reagir.
Viver é escolher. Escolhemos de acordo com os nossos Valores

Neste sentido, aplaudo a iniciativa da APEI, que este ano promoveu um curso sobre este tema!

Os Valores são tão esquecidos no nosso sistema educativo, quase exclusivamente cientifico... técnico...intelectual...

Causa e consequência desse facto, a sociedade dos nossos dias anda à deriva, sem bússola que lhe aponte o Norte!

T. S. - Muitas foram, de facto, as mudanças por que passou a nossa Sociedade, desde a fundação da Escola. - Qual lhe parece ser a realidade dos nossos dias e qual o papel das Educadoras perante a situação actual?

M.U. - O nosso Mundo actual é um Mundo dramático porque é um Mundo desumanizado. Governado pela técnica, o pragmatismo, o materialismo, o individualismo feroz, o homem é nele esmagado pelo isolamento e pela insatisfação das suas aspirações mais profundas.

Seria trágico que as Educadoras fossem arrastadas nessa voragem e se tornassem meras funcionárias ou, como já são denominadas, por vezes, «técnicas de educação»), perdendo assim a «alma» que são chamadas a transmitir a um ser humano indefeso que, neste caso, se torna por sua vez num objecto de manipulação.

A Juventude e a Infância, talvez mais ainda, precisam de modelos, de referências por onde se guiem. A falta destes, cada vez há menos Homens capazes de afirmação pessoal e independente. Não foram criados à partida, nem devidamente acompanhados... e perdem-se pelo caminho.

A procura insaciável do gozo, dos bens materiais, da facilidade, do sucesso pessoal... conduz à insatisfação, ao tédio, à fuga, à droga... ou então reduz-nos a seres acomodados, vencidos, indiferentes a tudo...

Acho, pois, de primordial importância ajudar a criança a viver a sua interioridade e não a destruir essa potencialidade que ela possui naturalmente.

T .S. - E a Maria manifesta preocupação sobre a acção das Educadoras?

M.U. - Um aspecto que me aflige é ver como, em alguns casos, as Educadoras abdicam da sua acção educativa. É a política da não intervenção. Sob pretexto de liberdade cortam a liberdade à criança, pois que liberdade não é seguir o nosso impulso espontâneo, a nossa fantasia, mas saber escolher.

Exige-se uma formação de critério para se ser verdadeiramente livre!
Estabelecer os alicerces de toda uma vida de interioridade, de alegria no esforço e na responsabilidade, com o estímulo afectivo que convida a uma perpétua superação na elevação espiritual e generosa

A criança precisa para a sua própria segurança, para a resolução certa dos seus conflitos interiores, existentes ao nível do subconsciente, da ajuda e orientação do adulto. É claro que todas as sugestões da criança devem ser aproveitadas, mas a influência discreta, efectiva e orientadora do adulto é imprescindível.

Considero que qualquer Educador, deve ser sempre, de certo modo, um «entraineur», que sugira hipóteses e crie entusiasmo.

Finalmente, estou profundamente convencida de que a verdadeira alegria é a realização de um ESFORÇO conseguido, muitas vezes repetido se for preciso.

A criança tem muito mais perseverança do que o adulto pensa para atingir o fim que se propõe.

O convite ao esforço falta totalmente na educação dos nossos dias... Assim vemos uma juventude insatisfeita sensaborona, que só vibra com mecanismos exteriores: os «rocks», a televisão, o futebol, as «boites...» até o trabalho, se for enquadrado, delineado, rotineiro, constitui, por vezes, uma fuga a si próprio. Não há disposição para suscitar convívios divertidos e espontâneos.

Achas que as crianças ainda sabem brincar?



T. S. - Sim, vejo as crianças brincar, na minha família, nos Jardins-de-infância que acompanho...

M.U. - As brincadeiras da minha infância ainda as sinto a marcarem-me: Os jogos das escondidas ou dos policias e ladrões... Hoje, ainda divertiriam! Ora no Jardim Infantil a actividade é toda ela lúdica, é certo. Mas será ela redutora ou dinamizadora para que, mesmo faltando os materiais e as técnicas - nos recreios, em casa, num cantinho... a criança saiba prosseguir o se jogo interior de «faz de conta», de construções espontâneas, da sociabilidade dos jogos colectivos e organizados que exigem iniciativa pessoa!?

T .S. - A nossa conversa está a chegar ao fim. Queria ter sido interprete das Educadoras, de todas aquelas a quem a Maria envia um recado que é a sua mensagem para cada uma de nós.

M.U. - Depois desta longa divagação «fora de moda» (há modas para tudo, até para a Educação!) queria concluir com um apelo às Educadoras que tiverem a pachorra de me ler, para que esqueçam, empurrem para o seu subconsciente os Piagets e os Freuds e procurem lançar um olhar critico e objectivo sobre o mundo em que vivemos, as suas crises, as suas carências e também as suas potencialidades e lhe ofereçam uma resposta construtiva no Homem que pretendem criar para esta época especifica. Seres em quem estabelecereis os alicerces de toda uma vida de interioridade, de alegria no esforço e na responsabilidade, com o estímulo afectivo que convida a uma perpétua superação na elevação espiritual e generosa. Assim se poderá constituir a nova geração do novo Mundo que reencontre a felicidade descobrindo a meta de que Santo Agostinho nos revela o segredo: «Criaste-nos para Vós, Oh! Deus só em Vós a nossa alma poderá encontrar a felicidade.»

Entrevista conduzida por Teresa de Castro Simas


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